Por Renato Janine
Ribeiro
Em 2012 as paixões se exaltaram no Brasil, com o julgamento de um caso que
até no nome mostrou uma divisão política acentuada: mensalão, diziam uns, Ação
Penal 470, diziam outros. O Judiciário condenou o líder petista que foi o
principal ministro do primeiro governo Lula. A discussão do assunto tem-se
confinado ao Brasil. Mas a experiência do maior país da América Latina encontra
paralelos numa potência regional da Ásia, o Paquistão, e num dos principais
Estados que saíram da ex-União Soviética, a Ucrânia.
Yulia Tymoshenko ficou famosa pela imagem e pela ação. Ela é a loura de
cabelos trançados que em 2004 liderou a Revolução Laranja, contra o governo da
Ucrânia, que teria fraudado as eleições. Depois de intensas manifestações, com a
simpatia da mídia internacional e o apoio dos governos ocidentais, ela chegou ao
poder. Com idas e vindas foi primeira-ministra da Ucrânia até 2010, quando
perdeu as eleições - e logo foi condenada à prisão. Responde a outros
processos.
No Paquistão, a Corte Suprema mandou prender o primeiro-ministro Raja Pervaiz
Ashraf, acusado de corrupção, às vésperas da campanha eleitoral ora em curso.
Dezenas de milhares têm protestado contra a corrupção; o problema, a meu ver, é
que parte deles disse ver o nome de Alá nas nuvens sobre Islamabad - o que
suscita minha desconfiança. Isso não absolve o governante, que continua livre. A
sonegação fiscal é frequente no país, bem como o uso de fundos públicos em
campanhas eleitorais.
Justiça ganha poder graças à corrupção política
São três casos diferentes. Cada um dos acusados pode ser inocente - ou
culpado. Quem se alegra com a condenação de José Dirceu se revolta com a prisão
de Tymoshenko, e vice-versa - ele, querido da esquerda, ela, dos liberais. Mas
os dois são acusados do mesmo: abuso do poder.
Há uma lógica parecida nos vários episódios. Ashraf teve a prisão decretada,
estando no poder. Dirceu foi condenado, com seu partido no poder - onde
continua. Tymoshenko foi julgada após a derrota, mas mesmo assim teve, nas
eleições que perdeu, 45% dos votos.
Em todos esses casos vemos uma atuação forte do Judiciário, que enfrenta quem
está no governo. É isso bom, é mau? A Justiça é, dos três poderes clássicos, o
único não-eleito. Sua composição é aristocrática. Juízes entram na carreira por
concurso, o que elege os melhores, os "aristoi" - ou por cooptação, quando os
tribunais escolhem quem vai ser juiz ou quem será promovido. Tudo isso contrasta
com a escolha, pelo voto popular, dos líderes dos poderes Executivo e
Legislativo. Daí, um certo conservadorismo da profissão judicial, que teve seu
pior exemplo na Corte Suprema americana na década de 1930, barrando as leis
sociais de Franklin Roosevelt.
Duas das três pátrias da democracia moderna, Grã-Bretanha e França (a
terceira sendo os Estados Unidos), sempre resistiram à tentação de dar poder
demais aos juízes. De Lolme dizia, em 1771, que o Parlamento britânico "pode
fazer qualquer coisa, menos transformar um homem em mulher ou uma mulher em
homem". Queria dizer que o único limite ao poder do Parlamento era o da
impossibilidade natural. Daí o choque para os britânicos, quando a corte
(europeia) de Estrasburgo declara inconstitucionais leis votadas em Westminster,
porque violariam direitos humanos.
Na França, a convicção da soberania popular é um fio condutor da política
desde a Revolução Francesa, vencendo dois imperadores, três reis e um marechal
(Pétain), que a tentaram controlar ou negar. Por isso, até recentemente, era
difícil arguir a inconstitucionalidade de leis. Só em 1974 a oposição foi
autorizada a levantar essa questão ante o Conselho Constitucional; só em 2008
surgiu a possibilidade de questionar uma lei já vigente, ainda assim, em casos
excepcionais.
Mas a tendência é a mudar isso, aumentando o poder ou dos tribunais da União
Europeia ou do Conselho Constitucional. Assim, aquilo que de Gaulle detestava (o
"governo dos juízes") pode vir a acontecer.
Estamos vendo, no Brasil, no Paquistão, na Ucrânia e talvez em mais países,
um governo pelos juízes?
Eu não iria tão longe. O que tem legitimado a judicialização - e mesmo a
criminalização - da política é, penso eu, apenas o descontentamento com a
corrupção na vida pública. Como as cortes têm entre suas missões a de zelar pela
honestidade, cresce a expectativa de que elas limpem a política. É esse o
espírito da Lei da Ficha Limpa. É o espírito de muitos que vibraram com as
condenações do mensalão.
Mas esta é uma situação explosiva. Se dermos aos tribunais o papel de zelar
pela política limpa, renunciaremos à cidadania. Porque, em países democráticos,
quem escolhe o governo somos nós, cidadãos. Se elegemos gente ruim, a culpa é
nossa; o que significa pedir socorro aos juízes? Pedimos para ser tutelados?
Dizemos que não conseguimos a democracia, o autogoverno, porque não conseguimos
eleger gente honesta?
Há uma alternativa. Ela é os próprios políticos perceberem que dançam à beira
do vulcão, posto que se desmoralizam com seu descaso pelas cada vez mais
numerosas denúncias de corrupção. Será eles mesmos limparem seus estábulos ou,
pelo menos, apurarem o que está errado até o fim e mais além, como sugeri em
coluna anterior: não apenas até tirar alguém do cargo, mas até julgá-lo e, se
culpado, condená-lo. Mas mesmo essa alternativa é triste. Depende de uma
iniciativa dos políticos, não dos cidadãos. É como se nossa sorte democrática
estivesse delegada quer aos tribunais suprindo as falhas dos políticos, quer a
eles criando vergonha na cara. A melhor opção seria os cidadãos, a sociedade,
tomarem a questão em mãos. Mas de que modo?
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia
política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras
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