No
mês de agosto de 1914, há cem anos, teve início o conflito mais
mortífero empreendido até então pela espécie humana. Foi a I
Guerra Mundial, e durou pouco mais de 4 anos e três meses. No fim,
cerca de 10 milhões de combatentes – quase todos entre 18 e 40
anos – estavam mortos. Os homens do poder e seus contadores
calculam que a economia das potências envolvidas recuou em cerca de
25% .
Mas os governos são incapazes
de estimar – por estranho a suas funções – o essencial: o
sofrimento dos casais desfeitos e dos órfãos, dos filhos que não
nasceram, dos namoros interrompidos, das amizades perdidas ou sequer
iniciadas, dos livros não escritos, dos poemas que poderiam ter
sido criados, das viagens não realizadas, sem contar as angústias
dos sobreviventes, os traumas das crueldades infligidas e sofridas,
os mutilados de corpo e de espírito, as neuroses adquiridas para
sempre...
Nunca
se matou tanto em tão pouco tempo. Não fora novo o desejo de matar,
mas eram novíssimos os meios técnicos disponíveis. Nicolau
Sevcenko falou do confronto como a “apoteose bélica” da
indústria e de sua capacidade para fabricar ferramentas de morte: a
metralhadora, o lança-chamas, a granada, as minas, os fuzis, os
gases venenosos, o submarino e, mais no final, os tanques e os
aviões.
A
conflagração originou-se de contradições entre três velhos
impérios – austríaco, russo e otomano, que disputavam o controle
dos Balkans, cordilheira de montanhas e mosaico de povos ao sul da
Europa. Era para ser localizada mas, pelo jogo das alianças,
espalhou-se, envolvendo a Alemanha, França, Inglaterra e Itália,
grandes Estados capitalistas que lutavam entre si pela hegemonia no
continente e pelas riquezas do planeta. O mundo estava em jogo e
não por acaso, duas potências extra-européias, Estados Unidos e
Japão, também entrariam no redemoinho.
Os
sábios chefes militares europeus, observou Marc Ferro, planejaram
uma aventura curta e vitoriosa. Prometiam o retorno glorioso dos
exércitos antes do Natal. Mas a luta armada não seria curta nem
vitoriosa. Ao contrário: foi longa, e naquele jogo, mesmo os
vitoriosos perderam, tal a sangria de recursos humanos e materiais.
Ganharam
apenas os grandes bancos e indústrias, pois as conflitos bélicos
oferecem sempre oportunidades de negócios. E cresceram os Estados,
fortalecidos pelas tarefas de coordenação das operações militares
e de centralização e concentração da economia, que supuseram, em
toda a parte, verticalização, hierarquias rígidas, controles
anti-democráticos e anti-populares. Estados em luta não permitem
questionamentos e oposições, debates contraditórios ou liberdades
de imprensa, de organização, de manifestação. Os valores
democráticos, conquistados pelos trabalhadores europeus nas décadas
anteriores, foram para o ralo, revogados. Se é bem conhecida – e
exata - a máxima de que a primeira vítima da guerra é a verdade,
a segunda será, sempre, a democracia.
Uma
grande questão, porém, subsiste e merece ser compreendida: por
que tantos dispuseram-se a morrer e a suportar sofrimentos sem fim?
A
chave pode estar na capacidade que os nacionalismos tiveram em
capturar a emoção, a razão e a fidelidade das gentes.
“É
preciso habituar o povo alemão a pensar que uma guerra é uma
necessidade, uma libertação. Se o inimigo nos atacar, ou se
quisermos dominá-lo, nós nos lembraremos que as províncias do
antigo império alemão ainda estão em mãos dos francos e que
milhares de irmãos alemães gemem sob o jugo eslavo. É uma questão
nacional: devolver à Alemanha o que ela possuiu”. Quem disse estas
palavras não foi um insano qualquer, mas os generais Schlieffen e
Ludendorff, altos chefes, dirigindo-se aos cadetes da Academia
Militar.
Ouviam-se
discursos semelhantes na França, na Itália, na Rússia e na
Inglaterra. O patriotismo, desde a alfabetização das crianças, era
inculcado como valor sagrado. Foi-se criando uma atmosfera
sufocante/libertadora de exaltação patriótica para o que
contribuíam ligas e organizações de defesa nacional, desfiles
militares, hinos patrióticos, cantados com a mão no peito e olhos
marejados de lágrimas, onde todos eram convidados a matar e a morrer
pela Pátria, celebrações em prosa e verso de conquistas e
massacres de povos “bárbaros”, histórias e lendas que exaltavam
a civilização de cada país.
Quando
explodiu a Guerra, quase todos acorreram alegremente para a defesa da
sua pátria, considerada ameaçada. Rosa Luxemburgo escreveu de
Berlim que havia na cidade um clima de linchamento contra quem se
opusesse aos hinos de morte. Queriam a glória para si mesmos e para
a própria Nação. No fim de pouco mais de quatro anos, lastimou
Erich Maria Remarque, toda uma geração de homens estava destruída,
mesmo os que escaparam das granadas. Não consideraram o que já
dizia Thomas Gray, um poeta do século XVIII: “os caminhos da
glória levam apenas ao túmulo”.
Daniel
Aarão Reis
Professor
de História Contemporânea da UFF
Email:
daniel.aaraoreis@gmail.com
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