Há sete anos as forças conservadoras e seu partido midiático fizeram do chamado “mensalão” o centro da estratégia para enfrentar a liderança crescente do PT e do presidente Lula, de vitalidade reconfirmada em seguidas eleições, incluindo a do último domingo
Poucas vezes, no registro das decisões judiciais, assistiu-se a cenas
tão nefastas como as do julgamento da ação penal 470, o chamado
“mensalão”. A maioria dos ministros da corte suprema, ao contrário do
que se passou em outros momentos de nossa história, dessa vez embarcou
na violação constitucional sem estar sob a mira das armas. Simplesmente
dobrou-se à ditadura da mídia.
A bem da verdade, alguns dos magistrados foram coerentes com sua
trajetória. Atiraram-se avidamente à chance de criminalizar dirigentes
de esquerda e prestar bons serviços aos setores que representam.
O voto de Gilmar Mendes, por exemplo, transbordava de revanchismo contra
o Partido dos Trabalhadores. O ministro Marco Aurélio de Mello, o mesmo
que já havia dito, em entrevista, que considerava o golpe de 1964 como
um “mal necessário”, seguiu pelo mesmo caminho. Mandaram às favas a
análise concreta das provas e testemunhos. Apegaram-se às declarações de
Roberto Jefferson para fabricar discurso de rancor ideológico, ainda
que disfarçado por filigranas jurídicas.
Outros juizes, porém, simplesmente abaixaram a cabeça, acovardados.
Balbuciavam convicções sem fatos ou argumentos dignos. A ministra Carmen
Lúcia não listou uma única evidência firme contra José Dirceu ou
Genoíno, contentando-se com ilações que invertem o ônus da prova. Foi
pelo mesmo caminho de Rosa Weber, sempre pontificando sobre a
“elasticidade das provas” em julgamentos desse naipe.
O papel nobre e honroso de resistência à chacina judicial coube ao
ministro Lewandovski, o único a se ater com rigor aos autos, esmiuçando
tanto os elementos acusatórios quanto as contraposições da defesa. Teve a
companhia claudicante de Dias Toffoli, sempre apresentado pela velha
midia como “ex-advogado do PT”, sem que o mesmo tratamento fosse
conferido a Mendes, notório aúlico tucano.
Assistimos a um julgamento político e de exceção. Um aleijão que fere os
princípios constitucionais e contamina as instituições democráticas. O
processo está sendo presidido por teorias que possam levar ao objetivo
pré-concebido, em marcha batida na qual são atropeladas seculares
garantias civis.
A existência da compra de votos dos parlamentares é reconhecida sem que
haja qualquer prova factual ou testemunhal. A transferência de recursos
financeiros entre partidos passa automaticamente a ser considerada
corrupção passiva, mesmo que não haja ato de ofício ou compromisso
ilícito, renegando a jurisprudência da corte e abrindo as portas para
toda sorte de subjetivismo.
Quadros de partido e governo são condenados porque a função que exercem
traz em seu bojo a responsabilidade penal por supostos atos de seus
subordinados ou até por aqueles sobre os quais teriam ascendência
não-funcional. Em nome dessa doutrina, denominada “domínio do fato”, a
presunção de inocência é fuzilada. Cabe ao réu comprovar que não teria
como desconhecer o fato eventualmente delituoso.
Essa coleção de barbaridades e ofensas à Constituição ontem levou à
condenação, por corrupção ativa, de José Dirceu, José Genoíno e Delúbio
Soares. Dos três, apenas o ex-tesoureiro petista esteva vinculado a
situações materiais, mas sem que houvesse qualquer elemento
comprobatório de ação corruptora. Arrecadou e transferiu irregularmente
fundos para os partidos, e desse procedimento é réu confesso, mas não
houve registro fático que ele algo tivesse comprado que tivesse sido
posto à venda pelos parlamentares denunciados.
Quando o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso conseguiu a emenda da
reeleição, o deputado Ronivon Santiago, então no PFL do Acre, confessou
ter recebido 200 mil reais para dar seu voto a favor dessa medida. Aqui
temos valor, fato e prova mediante confissão – aliás, de um crime que o
STF jamais se dispos a julgar. Nada disso, no entanto, apareceu na ação
penal 470. Apenas ilações e conjecturas a partir de mecanismos anormais
de financiamento partidário ou eleitoral.
Mas o caso de Dirceu e Genoíno é ainda pior. Não aparecem na cena de
qualquer crime, delito ou contravenção. A suposta prova contra o
ex-guerrilheiro do Araguaia é um contrato de empréstimo contabilizado e
quitado, cujas verbas não constam das transações interpartidárias, como
bem demonstrou o ministro Lewandovski. Foi condenado porque a ele se
aplicou a lógica de exceção: se era presidente do PT, não tinha como ser
inocente das denúncias formuladas.
A condenação do ex-chefe da Casa Civil, por sua vez, apresenta-se como a
maior das brutalidades legais cometidas. Salvo acusações do condenado
Roberto Jefferson, não há contra si qualquer testemunho ou evidência. Ao
contrário: dezenas de depoimentos juramentados corroboram sua
inocência, formando verdadeira contra-prova. Mas a maioria dos ministros
sequer se deu ao trabalho de citá-los ou analisá-los.
Ambos, Dirceu e Genoíno, tiveram seus direitos degolados para que os
interesses mobilizadores do processo se consumassem. Há sete anos as
forças conservadoras e seu partido midiático fizeram do chamado
“mensalão” o centro da estratégia para enfrentar a liderança crescente
do PT e do presidente Lula, de vitalidade reconfirmada em seguidas
eleições, incluindo a do último domingo. Condenar os dois dirigentes era
marco imprescindível dessa escalada.
O STF, acossado pela midia corporativa, além de aviltado pelo
reacionarismo e a covardia, prestou-se a um triste papel, escrevendo
página de vergonha e arbítrio em sua história. De instituição
responsável pela salvaguarda constitucional, abriu-se para ser o teatro
onde se encena a reinvenção da direita. Quem viver, verá.
Breno Altman é diretor editorial do sítio Opera Mundi e da revista Samuel.
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