quarta-feira, 8 de abril de 2015

Imagética e Império

De: Vila Vudu

Imagética e ImpérioPara compreender o medo que árabes e muçulmanos inspiram ao ‘ocidente’6/4/2015, Mahdi Darius NAZEMROAYA, Strategic Culturehttp://www.strategic-culture.org/news/2015/04/06/imagery-empire-understanding-western-fear-arab-and-muslim-terrorists.html

 
A  noção de que a maioria dos ataques terroristas são cometidos por árabes ou muçulmanos não apenas não tem qualquer fundamento histórico, como, além disso, é argumento sem qualquer comprovação empírica, associado ao moderno orientalismo,[1] que aí está vivo e forte.

O orientalismo, por sua vez é pesadamente associado a ideias norte-americanas sobre a própria ‘excepcionalidade’. É uma área de pensamento na qual ideias excepcionalistas e racistas coincidem profundamente. Na verdade, há uma linha quase invisível, mas que liga excepcionalismo, racismo e orientalismo.

Numa modalidade de pensamento ultrapassada, linear e geoetnocêntrica, todas as sociedades que vivam a leste e ao sul dos EUA, Canadá e Europa Ocidental — particularmente da França, Grã-Bretanha e dos países falantes de alemão – são vistas como deficientes e inferiores. Na Europa, significa que todos a leste da Alemanha são tacitamente ou escancaradamente pintados como culturalmente atrasados. São os países dos Bálcãs, os povos eslavos, albaneses, gregos, turcos, romenos, cristãos ortodoxos e as repúblicas ex-soviéticas.

Pelas leis do pensamento orientalista nos EUA, povos não europeus aparecem localizados ainda mais abaixo desse mesmo totem. São os povos da África, América Latina e Caribe.
 
Como nas atitudes excepcionalistas, as ideias orientalistas são importantes para garantir apoio à política exterior e às guerras de Washington, apresentadas como se se tratasse de empreitadas muito nobres. As atitudes orientalistas dos EUA veem o resto do mundo, do México ao Iraque e Rússia, como carentes da tutela e das atenções dos EUA. É como uma reconstrução do que se chamou “o fardo do homem branco”, conceito usado para justificar a colonização de todos que fossem definidos como não brancos.

O relacionamento entre
terrorismo e árabes e muçulmanos

Árabes e muçulmanos são alvos preferenciais do orientalismo norte-americano. Seja tácito ou extensivo, ambos, árabes e muçulmanos são pintados como seres localizados abaixo do limiar da civilização, não civilizados nesse sentido. O terrorismo está profundamente associado a imagens de árabes e muçulmanos na mente de muitos norte-americanos; isso, porque os norte-americanos foram adestrados a pensar que a maioria dos terroristas são árabes ou muçulmanos.

Em diferentes graus, sempre que muçulmanos ou árabes étnicos cometem crimes na chamadas sociedades ocidentais, como o Canadá ou os EUA, a avaliação tácita ou ostensiva ‘declara’ que o crime foi cometido por todos os muçulmanos e todos os árabes coletivamente. Os traços ou os contextos de vida árabes e muçulmanos daqueles criminosos são usados para explicar os crimes que tenham cometido. Crimes cometidos por indivíduos árabes ou muçulmanos não são apresentados como crimes de indivíduos criminosos, mas como crimes de uma coletividade apresentada como coletivamente criminosa. Essas noções ignoram os fatos de que os muçulmanos são as maiores vítimas do terrorismo.

Sete dos dez países mais violentamente agredidos por ataques terroristas são predominantemente muçulmanos, segundo o Índice de Terrorismo Global definido pelo Institute for Economics and Peace, com sede na Austrália, para 2014, que tem base no banco de dados de terrorismo global da Universidade de Maryland. Trabalhando com dez como valor máximo e zero como valor mínimo, toda a comunidade internacional é sistematicamente distribuída num ranking. Embora a definição de incidentes terroristas no banco de dados de terrorismo global da Universidade de Maryland seja muitíssimo discutível, ainda assim é possível fazer algumas inferências importantes a partir desse conjunto de dados e do índice de Terrorismo Global do Institute for Economics and Peace.

Vários traços são bem visíveis, se os leitores analisam a natureza e as identidade dos perpetradores do que se classifica como atos de terrorismo nos 30 principais países dos que compõem o Índice de Terrorismo Global para 2014. O primeiro desses traços é que a violência gerada por aqueles grupos terroristas cai no contexto de insurreições e guerras civis que são tratadas em geral, como atos de terrorismo. Por exemplo, é o caso de países como Somália, Filipinas, Tailândia, Colômbia, Turquia, Mali, República Democrática do Congo e Nepal, que ocupam respectivamente os lugares 7º, 9º, 10º, 16º, 17º, 22º e 24º. Examinados de perto, várias dessas insurgências podem ser associadas a rivalidades internacionais e jogos de poder jogados por EUA e aliados. Quanto mais se examina, mais essa ideia se confirma.

O segundo traço é que a maioria desses casos de terrorismo nos países que aparecem no Índice, especialmente os que ocupam os lugares superiores do ranking, é que todos estão conectados direta ou indiretamente à interferência de Washington. Por exemplo, é o caso do Iraque, do Afeganistão ocupado pela OTAN, do Paquistão, da Síria, da Somália, do Iêmen, da Rússia, do Líbano, da Líbia, da República Democrática do Congo, do Sudão, do Sudão Sul, China e Irã, que aparecem, respectivamente, nos seguintes lugares do ranking: 1º, 2º, 3º, 5º, 7º, 8º, 11º, 14º, 15º, 18º, 19º, 20º, 25º e 28º.

As guerras dos EUA, as intervenções pelo Pentágono, os golpes engendrados e apoiados pelos EUA ou o apoio do governo dos EUA aos chamados grupos “de oposição” ou regimes fantoches, têm sido, todos esses fatores, uma base a partir da qual o terrorismo passa a atingir como praga aqueles mesmos países.

Além dos países listados acima, segundo o Global Terrorism Index, 82% das mortes globais são atribuídas a atos de terrorismo acontecidos no Afeganistão ocupado pela OTAN, Iraque, Paquistão, Síria e Nigéria. Os laços com a política externa dos EUA são muito evidentes.

Nem todos os árabes/muçulmanos são terroristas,
mas a maioria dos terroristas são árabes/muçulmanos?

É voz corrente que, ainda que nem todos os terroristas sejam árabes ou muçulmanos, a maioria dos terroristas seriam árabes ou muçulmanos.  Verdade, ou apenas mais um mito? Exame dos dados empíricos reunidos nos EUA e na Europa ajudarão a responder essa pergunta.

Nos EUA, que aparece em 30º lugar no Índice de Terrorismo Global de 2014, a maioria dos terroristas são não muçulmanos, segundo dados do FBI. Dentro dos EUA, apenas 6% dos casos de terrorismo, de 1980 a 2005, foram cometidos por terroristas muçulmanos.[2] Os demais 94% dos casos de terrorismo e atos terroristas — quer dizer: a ampla maioria – não têm qualquer relação com árabes, muçulmanos ou com o Islã.[3]

Por mais que seja questionável a metodologia do FBI para determinar o que seja um ataque terrorista, temos de aceitá-la aqui, para poder argumentar. Segundo o mesmo relatório do FBI, houve mais ataques terroristas lançados por judeus do que por muçulmanos, entre 1980 e 2005, em solo dos EUA.

Os mesmos dados do FBI foram compilados pelo website loonwatch.com, linkado pela Universidade Princeton, num quadro que analisa como segue os casos de ataques terroristas em solo dos EUA entre 1980 e 2005: 42% terrorismo hispânico; 24% terrorismo de extrema esquerda; 16% de outros tipos de terroristas que não se enquadram nas demais principais categorias; 7% terroristas judeus; 6% terroristas muçulmanos; e 5% terroristas comunistas.[4]

Se terroristas muçulmanos são responsáveis por 6% dos ataques em solo norte-americano de 1980 a 2005, terroristas  judeus e hispânicos foram responsáveis, respectivamente, por 7% e 42% dos ataques terroristas em solo norte-americano no mesmo período. Não há qualquer pânico generalizado contra judeus nem contra hispânicos. Os olhos das mídia-empresas e dos governos não se focam nesses grupos, como se focam nos árabes étnicos e nos muçulmanos.

E o mesmo padrão repete-se na União Europeia. A página loonwatch.com também compila dados sobre terrorismo na União Europeia, a partir dos relatos do Gabinete de Polícia da União Europeia [orig. European Union’s European Police Office (Europol)] de 2007, 2008 e 2009, no seu Relatório Anual da Situação e Tendências do Terrorismo na União Europeia [orig. EU Terrorism Situation and Trend Reports].[5]

Os dados, nesse caso, põem os muçulmanos a distância ainda maior dos atos terroristas. 99,6% dos atos terroristas na União Europeia foram cometidos por não muçulmanos.[6] O número de ataques falhados, abortados ou bem-sucedidos realizados por muçulmanos na União Europeia, de 2007 a 2009 é de apenas cinco ataques; e houve 1.352 ataques terroristas por grupos europeus separatistas – aproximadamente 85% de todos os incidentes de terrorismo na União Europeia.6

Segundo a Europol, houve 104 ataques falhados, abortados ou bem-sucedidos realizados por grupos chamados “de esquerda”, e houve outros 52 ataques classificados como não específicos.7  No mesmo período, houve dois ataques que a Europol classificou como terrorismo de direita.8

Há enorme disparidade entre quem está causando e cometendo atos terroristas, e os que morrem e são acusados dos crimes. Apesar de os fatos sinalizarem eloquentemente outra direção, quando árabes ou muçulmanos cometem crimes, os criminosos são identificados por etnia e por religião. Mas não é o que acontece quando os criminosos são não árabes ou não muçulmanos.

Por mais que o orientalismo já reconheça que os muçulmanos são as principais vítimas do terrorismo, o mesmo orientalismo ainda manobra para fazer cair alguma culpa sobre as próprias vítimas, ao apresentá-las tacitamente como membros de sociedades selvagens, ou de sociedades já próximas de conhecerem destino violento, como animais na selva.

Imagética e Império

Em todo o mundo, as ilusões estão em plena operação. A verdade foi posta de cabeça para baixo. Vítimas são denunciadas como criminosos.

Apareça declarada ingenuamente, implícita ou subentendida, a noção de árabes e muçulmanos como selvagens e terrorista tem papel significativo na imagística do chamado ‘mundo ocidental’, a mesma na qual o dito ‘ocidente’ significa(ria) igualdade, liberdade, direito de escolha, civilização, tolerância, progresso e modernidade, ao mesmo tempo em que o chamado ‘mundo árabe muçulmano’ é como um submundo, onde reinam a desigualdade, as proibições, a tirania, nenhum direito de escolha, selvageria, intolerância, atraso e primitivismo.

Essa imagética serve, de fato, para despolitizar a natureza política das tensões. Como que ‘desinfeta’ as ações do império, a diplomacia por coerção contra o Irã; o apoio à mudança de regime na Síria; as invasões contra Afeganistão e Iraque; a intervenção militar dos EUA na Somália, Iêmen e Líbia. Como já mencionado, essa imagética, em diferentes graus, estende-se a outros espaços, que são vistos pelos orientalistas norte-americanos como espaços ou entidades não ocidentais – como está acontecendo hoje com Rússia e China.

Nas raízes, essa imagética é realmente parte de um discurso que sustenta um sistema de poder que ‘autoriza’ o império a exercer seu poder sobre os ‘de fora’ e também contra os próprios cidadãos nos EUA. É por causa da política externa e de interesses dos EUA que árabes e muçulmanos, contra todas as pesquisas, investigações e provas, são apresentados como terroristas. E apagam-se do mundo todos os dados e fatos comprovados, que mostram que o grande fator que produz terrorismo e terroristas é sempre, em todos os lugares, a intervenção norte-americana.

Por isso é que se mantém uma fixação obcecada no ataque ao Parlamento no Canadá, na crise dos reféns de Martin Place em Sidney, no ataque à redação de Charlie Hebdo em Paris. E absolutamente nenhum analista, nenhum colunista, nenhum jornalista,  nenhum ‘especialista’ fala do apoio que os governos dos EUA, do Canadá, da Austrália e da França continuam a dar aos terroristas e ao terrorismo, e que está custando dezenas de milhares de vidas na Síria. ******


[1] Para saber o que é, vide SAID, Edward W. [1078] ORIENTALISMO. O Oriente como invenção do Ocidente, trad. Rosaura Eichenberg, São Paulo: Companhia das Letras. Sobre o livro, ver http://www.companhiadasletras.com.br/detalhe.php?codigo=80034 [NTs].
[2] Federal Bureau of Investigation, Terrorism 2002-2005, (US Department of Justice, 2006): pp.57-66.
[3] Ibid.
[4]All Terrorists are Muslims…Except the 94% that Aren’t” [Todos os terroristas são muçulmanos, exceto os 94% que não são”], loonwatch.com, 20/1/2010.
[5]Europol Report: All Terrorists are Muslims…Except the 99.6% that Aren’t [“Todos os terroristas são muçulmanos, exceto os 99,6% que não são”], loonwatch.com, 28/1/2010.
[6] Notas 6-8: European Police Office, EU Terrorism Situation and Trend Report 2007 (The Hague, Netherlands: Europol, March 2007); European Police Office, EU Terrorism Situation and Trend Report 2008 (The Hague, Netherlands: Europol, 2008); European Police Office, EU Terrorism Situation and Trend Report 2009 (The Hague, Netherlands: Europol, 2009).

sábado, 28 de março de 2015

O risco de chegar atrasado ao dia do golpe


Fortalecidos pela magnitude das manifestações do dia 15 de março, os organizadores do dia 12 de abril já organizam um golpe na democracia brasileira.
Juarez Guimarães

A coluna de Jânio de Freitas no jornal Folha de S. Paulo do domingo 22 de março – “Começar mais uma vez” - deve ser justamente saudada como a expressão nitidamente instalada na consciência democrática e republicana brasileira de que a direção do PSDB já está publicamente inserida em uma campanha golpista. Como recordamos no ensaio publicado nesta Carta Maior  -  “Por que ainda é possível derrotar a campanha golpista do PSDB? - , já havíamos formulado este diagnóstico em dezembro de 2014.

Não há mais lugar para a inconsciência ou subestimação da ameaça que ronda a democracia brasileira: já está em curso uma disputa pública bastante avançada sobre a legitimidade democrática da interrupção do segundo mandato da presidenta Dilma Roussef em seus inícios. Pesquisas recém divulgadas - elas próprias fazem parte da campanha midiática - dão um alto grau de impopularidade da presidenta, quatro quintos da população com a opinião de que ela sabia da corrupção na Petrobrás, três quintos marcando a opção de que ela não fez o que deveria para interrompê-la. Na pesquisa CNT/ Sensus, divulgada no dia 23 de março, 59% da população já apoiaria a proposta do impeachment da presidenta, seguindo altos índices de impopularidade do governo e de rejeição .
Se já é nítida a vontade e também a estratégia golpista do PSDB, é preciso agora diagnosticar o tempo em aceleração do processo político em curso: há um risco enorme do governo Dilma e das forças políticas que o sustentam chegarem atrasadas... ao dia do golpe.
Há boas razões para prever que o anunciado dia 12 de abril, marcado para convergir um novo protesto nacional de ruas contra a presidenta Dilma e o PT, está sendo pensado como um dia da instalação do golpe na democracia brasileira. Como isto poderia se dar?

A sua formulação de legitimidade democrática já está sendo publicamente exposta por FHC, cuja voz pública tem desde o início formulado o diapasão dos golpistas: se em dezembro já questionava a legitimidade da vitória eleitoral de Dilma, atribuindo a ela uma semi-legitimidade ou uma idéia de um país dividido ao meio, após o dia 15 de março já diferencia o impeachment por razões políticas do impeachment por razões técnicas: o primeiro poderia se dar por uma razão clara de ingovernabilidade. Seria uma decisão política do Congresso Nacional. Esta formulação tem, em linhas gerais, sido seguida por várias lideranças nacionais do PSDB.

O dia 12 de abril poderia, em uma imaginação golpista, através do cerco simbólico a centros do poder, inaugurar uma agenda de um lock-out nacional  – como se fez um teste, por exemplo, misturando reivindicações de caminhoneiros com o “fora Dilma” - , em uma cena dramaticamente configurada por todos os meios de comunicação empresarial de massa. Seria previsível neste contexto o acirramento dos ataques, inclusive físicos, a símbolos e sedes do PT, seguindo a linha da criminalização do partido que já freqüenta as manchetes dos jornais, como a manchete de O Globo de 21 de março.

Neste campo de previsão, o dia 12 de abril seria o dia 15 de março mais centralizado politicamente na exigência da renúncia ou saída imediata de Dilma (como aliás vem já sendo convocado nas redes), com mais envolvimento empresarial, com mais dramatização anti-petista e anti-governo (através de novas delações, depoimentos de Youssef na CPI, generalização das denúncias de corrupção em outras empresas estatais, algum testemunho ou ilação vinculando a corrupção ao PT ou à campanha de Dilma), com mais simbolismo (centro em São Paulo, mas simbolicamente estabelecendo o cerco em Brasília ao Palácio do Planalto).

Em uma cena de tal dramatização, seria possível confiar que a maioria da Câmara Federal está suficientemente posicionada a favor do governo para resistir a uma ação direta amparada em forte sentimento nacional captada nas redes midiáticas ou pesquisas de opinião?
Três dinâmicas

Toda a inteligência da estratégia golpista do PSDB está em que o seu núcleo real de comando organiza a manifestação pública mas não a convoca:  para lhe dar um sentido “cívico”, para além dos partidos, as redes sociais e o engajamento direto da mídia empresarial de massa cumprem este papel.  As principais lideranças do PSDB, do DEM, do PPS, do Solidariedade aparecem de forma discreta ou apenas “apóiam”, dissolvidas no verde-amarelo cívico.

Sem a presença explícita da mediação dos partidos, governos ou empresas, esta dinâmica de ruas, redes e mídias pode desenvolver todo o seu potencial anti-democrático em três dimensões fundamentais.

Em primeiro lugar, a aceleração do tempo político: não há que esperar o processo jurídico, o processo parlamentar da democracia. Há, de fato, uma sincronia entre a ação do PSDB que queria evitar a posse de Dilma e já adiantava o compasso da desestabilização do governo antes do seu início e a marcha da impaciência que mexe com os nervos à flor da pele dos manifestantes. Um jovem, bastante aplaudido ao microfone,  na manifestação do dia 15 de março na avenida Paulista acusava os “políticos que querem sangrar o governo Dilma” de serem conciliadores!

Em segundo lugar, a intolerância deve saturar toda a cena: não se deve duvidar ou discutir a verdade de que o PT e o governo Dilma são os principais culpados da corrupção no Brasil. O discurso cívico correto que não se deve tolerar a corrupção é dirigido unilateral e de modo viesado para o discurso desqualificador de que não se deve tolerar o PT ou o governo Dilma. Esta fuga ao contraditório democrático também não é espontânea mas criada pelo tratamento seletivo das investigações, pela sua publicidade dirigida contra o PT nos oligopólios de comunicação e, principalmente, pelo discurso oficial que tem a sua origem, desde 2005, na inteligência do Instituto FHC.  “Para acabar com a corrupção no Brasil, a solução é simples: basta tirar o PT do governo”, afirmou Aécio Neves no último debate na campanha eleitoral de 2014; “perdi a eleição para uma organização criminosa”, reafirmou após as eleições.

Em terceiro lugar, a cena da manifestação deve estar aberta ao discurso do ódio: não deve haver limites para a violência verbal ou simbólica. Erra, como quase sempre, o colunista parcial Elio Gaspari:  não se tratam  de excentricidades ou slogans de pequenos grupos fascista ou de ultra-direita. O micro-fone está aberto à barbárie: um torturador não foi convidado à fala ao microfone na Paulista? Bonecos da  presidenta Dilma e do ex-presidente Lula enforcados vistosamente na grade do viaduto?  Mas esta violência sem limites está já, como se observou, na fala das principais lideranças do PSDB e nos meios midiáticos que controlam: a presidenta com o pescoço pronto para ser ceifado na charge da primeira página de O Globo, a presidenta Dilma rodando bolsinha na charge que ilustra um ponto de vista do editor do site UOL!

Vigília democrática

Esta inteligência estratégica golpista que arma o tempo acelerado, a intolerância e o discurso do ódio deve ser enfrentada desde já e com a máxima urgência por uma inteligência democrática, capaz de mobilizar os fundamentos dos sentimentos democráticos, republicanos e socialistas do povo brasileiro.

O primeiro desafio é tomar a pulsão verde amarela do tempo golpista através da antecipação de seus passos. Já há elementos e consciência suficientes para propor à sociedade brasileira uma vigília democrática verde-amarela e de todas as cores e a formação de um amplo movimento em defesa da democracia, das liberdades e contra a corrupção. Esta vigília democrática deveria ser capaz de mobilizar e denunciar oficialmente as intenções golpistas de FHC, Aécio Neves, Rede Globo e dos grupos proto-fascistas que organizam as manifestações pelo impedimento político da presidente. Ele deveria ser capaz de formar em torno de si toda uma rede diária e permanente de comunicação democrática e popular, como fez Brizola em 1962 formando a partir de uma rádio gaúcha toda um rede nacional pela legalidade da posse do vice-presidente Jango Goulart após a renúncia de Jânio.

O segundo desafio é o de desconstruir a autoridade do PSDB de conduzir a luta pelo fim da corrupção sistêmica no Brasil, através de uma massiva campanha pública capaz de furar o bloqueio do anti-pluralismo midiático. As lideranças que conduzem a campanha golpista estão cercadas por todos os lados de denúncias documentadas de farta e sempre impune corrupção. O PSDB é certamente, pode se comprovar com razão e provas, o partido que dá a maior cobertura e apoio à corrupção no Brasil! Em particular, a figura de Aécio, presidente do partido golpista, é alvo de vídeos de Youssef, provas documentadas e periciadas, testemunhos convergentes que indicam a sua presença em escândalos de corrupção. Os golpistas conseguirão manter isto à margem do conhecimento da opinião pública nacional, da maioria dos brasileiros?

O terceiro grande desafio é o de recoesionar a base política, social e eleitoral do segundo governo Dilma através de uma rápida e urgente reorientação de política econômica, retomando os temas do desenvolvimento, da construção dos direitos das classes trabalhadoras, da ampliação e qualificação das políticas públicas, do enfrentamento dos preconceitos contra os negros, as mulheres e os gays.

Não se pode lutar contra o ódio da direita golpista sem mobilizar, de modo profundo, as paixões e esperanças do povo brasileiro em defesa de seus direitos. Isto não acontecerá se o discurso, a imagem e os símbolos do governo estiverem atados à linguagem fatal da recessão, da restrição, mesmo que na margem, de direitos, na limitações das políticas públicas.

Esta vigília democrática, por sua representação e força acumulada,  com sua capacidade de mobilização e denúncia, ainda teria condições de paralisar a estratégia golpista que converge para o próximo dia 12 de abril.
Créditos da foto: José Cruz/Agência Brasil


sexta-feira, 27 de março de 2015

Corrupção e Politicagem Pesada

Tradução De: Vila Vudu

Corrupção e Politicagem Pesada

18/3/2015, George Monbiot – http://www.monbiot.com/2015/03/18/hard-graft/ (Trad. Emex, que nos ajuda do Canadá)

A Grã-Bretanha não é corrupta? Só não será, se se adotar a mais ridícula e estreita definição de “corrupção”.

Quase todos os dias, jornais e televisões ingleses estão repletos de histórias que me cheiram a corrupção. Mas, no ranking de corrupção da ONG “Transparência Internacional”, a Grã-Bretanha ocupa o 14º lugar entre 177 nações (1) – classificação que sugere que ela seria uma das mais bem governadas nações da Terra.
A conta não fecha. Ou todos os 13 países ainda mais corruptos que a Grã-Bretanha são espetacularmente corruptos, ou há algo errado com esse ranking da “Transparência Internacional”.

É analisar um pouco, e logo que se vê que, sim, o problema é o critério para classificar os países, o chamado ranking com que essa ONG opera, e que se serve de definições de “corrupção” as mais estreitas e seletivas. Nas nações ricas, práticas corriqueiras que poderiam sem violência ser expostas como práticas corruptas, são simplesmente desconsideradas; as mesmas práticas corriqueiras, em países pobres, são dramática e teatralmente enfatizadas.

Esta semana, foi publicado um livro deveras inovador: editado por David Whyte, o livro leva o título de
How Corrupt Is Britain?(2) [Quão Corrupta é a Grã-Bretanha?]. É obra que deve ser lida por todos que concordem que a Grã-Bretanha merece(ria) a posição em que aparece no ranking de “Transparência Internacional”.

Será que algum setor comercial bancário sobreviveria ainda na Grã-Bretanha, não fossem as práticas muito corruptas dos bancos, ou que envolvem bancos, ou que seriam impossíveis sem os bancos? Pense na lista dos escândalos: pensões subfaturadas, fraudes hipotecárias, o golpe do seguro de proteção de pagamento, o golpe da manipulação da taxa interbancária Libor, as operações com informações privilegiadas e tantos outros mais. Depois, pergunte a si mesmo: espoliar pessoas está sendo definido como aberração, ou apenas como  ‘modelo de negócios’?

Nenhum dirigente de banco foi indiciado, sequer desqualificado ou demitido por práticas que contribuíram para desencadear a crise financeira: a legislação que os teria coibido ou enquadrado em crimes já havia sido paulatinamente esvaziada, antes, por sucessivos governos.

Um ex-ministro do atual governo dirigia o banco HSBC (2), quando este se lançou à prática sistemática dos crimes de evasão fiscal (3), lavagem de dinheiro do narcotráfico e a garantir serviços a bancos da Arábia Saudita e de Bangladesh ligados ao financiamento de terroristas (4). Em vez de processar o banco, o diretor da Controladoria Fiscal do Reino Unido passou a trabalhar para aquele mesmo banco, tão logo se aposentou (5).

Operando com o apoio dos territórios britânicos de além-mar e postos avançados da Coroa, Londres é líder mundial dos paraísos fiscais, controlando 24% de todos os serviços financeiros (6) lá oferecidos.

A cidade oferece ao capital mundial um sofisticado regime de sigilo, dando assistência não apenas a sonegadores de impostos, mas também a contrabandistas, fugitivos de sanções e lavadores de dinheiro. Como disse a juíza de instrução francesa Eva Joly, queixando-se, a City “nunca forneceu sequer uma ínfima evidência útil a qualquer magistrado estrangeiro” (7).

Reino Unido, Suíça, Singapura, Luxemburgo e Alemanha estão todos entre os países menos corruptos na lista de Transparência Internacional. Mas também figuram na lista da Rede de Justiça Fiscal (Tax Justice Network) como administradores dos piores regimes sigilosos de investimento e paraísos fiscais (8). Por alguma estranha razão, nada disso é levado em conta para definir o ranking da ONG Transparência Internacional!

A Iniciativa de Financiamento Privado (Private Finance Initiative) tem sido usada por sucessivos governos britânicos para iludir os cidadãos quanto à extensão dos empréstimos que canalizaram dinheiro público para corporações privadas. Envolta em segredo, recheada de propinas ocultas (9), a IFP tem fisgado hospitais e escolas sempre com dívidas impagáveis; ao mesmo tempo, a mesma IFP impede o controle público sobre inúmeros serviços públicos.

Espiões de estado lançam-se à vigilância (10) em massa, ao mesmo tempo em que a Polícia trabalha servindo-se de identidades de crianças mortas, mente em tribunais para fornecer provas falsas e incita crianças ao ativismo extremista, além de infiltrar-se em grupos pacíficos, tentando destruí-los (11). As forças policiais já mentiram sobre o desastre de Hillsborough (12); já protegeram pedófilos ativos (13), inclusive Jimmy Savile e, como hoje se afirma, toda uma gama de dirigentes políticos suspeitos também do assassinato de crianças. Savile foi protegido também pelo Serviço Nacional de Saúde (National Health Service) e pela BBC – que demitiu a maioria dos que tentaram expô-lo (14) e promoveu os que tentaram perpetuar o encobrimento.

Há o problema de nosso intocado sistema de financiamento de políticos, que permite a compra dos partidos (15) pelos mais ricos. Há o escândalo das escutas telefônicas e dos jornais que subornam policiais; da privatização dos Correios britânicos, o Royal Mail (16), vendido a preços insignificantes; o esquema da “porta giratória”, que permite que empresários e empregados de grandes empresas, depois de eleitos, estejam em posição que lhes permite redigir leis que defendem os seus próprios interesses ou dos respectivos patrões empresários; o assalto à seguridade social e aos serviços prisionais, por empresas privadas terceirizadas; a fixação do preço da energia por empresas; o roubo diário perpetrado por empresas farmacêuticas, e tantas dúzias de casos semelhantes. Nada disso é corrupção? Ou essas são operações consideradas ‘sofisticadas’ demais para serem expostas sob o seu verdadeiro nome, “corrupção”?

Confiar no Banco Mundial para aferir corrupção, é como confiar em Vlad, o Empalador, para aferir direitos humanos
Entre as fontes usadas por Transparência Internacional para produzir seu ranking estão o Banco Mundial e o Fórum Econômico Mundial.

Confiar no Banco Mundial para aferir corrupção, é como confiar em Vlad, o Empalador, para aferir direitos humanos. Orientado pelo princípio um dólar\um voto, controlado pelas nações ricas e atuando nas nações pobres, o Banco Mundial financiou centenas de elefantes brancos que enriqueceram enormemente as elites mais corruptas e beneficiaram capitais estrangeiros (17), ao mesmo tempo em que expulsava pessoas das próprias terras e deixava o país afogado em dívidas impagáveis.

Para espanto geral, a definição do Banco Mundial para a corrupção é tão limitada, que não considera esse tipo de prática.

E o Fórum Econômico Mundial estabelece sua escala de corrupção a partir de uma pesquisa que consulta executivos mundiais (18), precisamente eles, cujas empresas são beneficiárias diretas do tipo de práticas que estou listando nesse artigo. As perguntas se limitam ao pagamento de propinas e à aquisição corrupta de fundos públicos por interesses privados (19), excluindo o tipo de corrupção que prevalece nas nações ricas.

Quando entrevista cidadãos comuns, as entrevistas de Transparência Internacional seguem a mesma linha: a maior parte das perguntas específicas concerne ao pagamento de propinas (20).

[A corrupção que cobra propinas é a única modalidade de corrupção na qual empresas e empresários privados são obrigados a pagar. Em todas as demais modalidades de corrupção, empresas e empresários privados ficam com todo o produto do roubo para si.

Por isso, precisamente, todo o alarido metido a ‘ético’ das investigações de corrupção, que chega ao grande público pelos veículos da mídia-empresa, expõe só, exclusivamente, um lado da corrupção (os servidores públicos corruptos ou apenas acusados de corrupção, sem que jamais se prove coisa alguma), e muito cuidadosamente esconde o outro (as empresas e empresários privados corruptores, os quais, não por acaso, são grandes anunciantes dos mesmos veículos da mídia-empresa metida a ‘ética’ (NTs)].

Para o autor do livro Quão corrupta é a Grã-Bretanha?, essas concepções do que seja “corrupção” são parte de uma longa tradição de retratar o fenômeno como ‘desgraça’ que só acometeria nações frágeis, as quais teriam de ser ‘resgatadas’  por “reformas” impostas por poderes coloniais e, mais recentemente, por organismos como o Banco Mundial e  o FMI.

“Reforma” para essas entidades é sinônimo de arrocho [chamado de ‘austeridade’], privatização, terceirização e desregulamentação.  Com suas “reformas”, aquelas entidades sugam dinheiro diretamente das mãos dos pobres, para entregá-lo a oligarcas nacionais e mundiais.

Para organizações como o Banco Mundial e o Fórum Econômico Mundial, há pouca diferença entre o interesse público e os interesses das corporações internacionais. O que seria visto como corrupção, a partir qualquer outra perspectiva, é apresentado por eles como ‘economia saudável’.

O poder financeiro mundial e a imensa riqueza da elite global estão fundados na corrupção. Os beneficiários têm interesse, evidentemente, em operar com definições de “corrupção” que os ‘resgata’ e preserva.

Sim, muitas nações pobres sofrem o flagelo do tipo de corrupção em que funcionários públicos aceitam propinas. Mas os problemas que afligem a Grã-Bretanha são mais profundos, porque quando o sistema já é dominado pela elite, propinas são detalhe pouco importante, são supérfluas. *****
NOTAS
1. https://www.transparency.org/cpi2014/results   
6. John Christensen, 2015, in David Whyte (ed). How Corrupt is Britain? Pluto Press, London.
7. Nicholas Shaxson, 2011. Treasure Islands: Tax Havens and the Men Who Stole the World. Random House, London. http://treasureislands.org/
12. Sheila Coleman, 2015, in David Whyte (ed). How Corrupt is Britain? Pluto Press, London.

quinta-feira, 12 de março de 2015

A CRISE ETICO-POLITICA

A CRISE ETICO-POLITICA

Jacques Távora Alfonsin

As/os brasileiras/os estão vivendo, nessas últimas semanas, uma expectativa cheia de ansiedade relacionada com o indiciamento de pessoas do mundo político e empresarial na operação lava-jato, pela prática de ilícitos que só se tem ideia de quais sejam, pelo menos por enquanto, por versões relacionadas com delações premiadas.

Há um clima apaixonado de discussão e de injúrias recíprocas presente em ásperos diálogos trocados nas redes sociais. No estado atual da investigação, porém, agora que o Supremo Tribunal Federal já recebeu os inquéritos da Polícia Federal, e a possibilidade de investigação sobre responsabilidades por possíveis ilícitos praticados por agentes políticos se reconhece possível, parece mais importante examinar-se a qualidade da água já disponível para a limpeza institucional pretendida pela Operação Lava-jato.

Se ela for composta rigorosamente de acordo com o princípio constitucional da moralidade, por exemplo, pressuporá comportamento ético conhecido de tantas quantas forem as pessoas legalmente legitimadas para instruir o processo onde as provas serão produzidas. Isso, pelo menos no referente à CPMI já instalada no Congresso Nacional, deveria excluir a possibilidade de qualquer das/os suas/seus integrantes, direta ou indiretamente indiciadas/os, dela participarem. Seria absurda a hipótese de alguém, suspeito de estar incurso em ilícitos penais ou cíveis, dentre outros os do art.55, parágrafo 1º da Constituição Federal, ser juiz dos seus próprios atos. Essa é uma disposição constitucional em que o direito e a moral estão claramente juntos. Independentemente de outras penas, a perda do mandato de deputado e senador pode se dar, conforme o parágrafo primeiro desse artigo 55:

“É incompatível com o decoro parlamentar, além dos casos definidos no regimento interno, o abuso das prerrogativas asseguradas a membro do Congresso Nacional ou a percepção de vantagens indevidas.”

O Presidente do Senado e o da Câmara, então, também indiciados pela Polícia Federal, pelo grau de poder decisório de que são titulares e em virtude desse princípio ético, deveriam eles próprios tomar a iniciativa de se afastar das suas funções, quando menos durante a tramitação do processo aberto pela CPMI, garantida assim a impossibilidade de se levantar qualquer suspeita de sua interferência nos trabalhos. Como se sabe, isso pode-se dar até por simples influência ou afinidade partidária. Que confiem, pois, como outras/os indiciadas/os, na disposição do art. 5º, inciso LVII da mesma Constituição: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.”

Se esses pressupostos de lisura ético-jurídica não se concretizarem, já virá poluída a água da Lava-jato. Com preconceitos, pré-julgamentos, raiva, a nunca ausente paixão partidária e ideológica, a chicana na manipulação das provas, os bastidores de conchavos em casos tais, ela não será capaz de alcançar os seus objetivos. Ocultar-se o fato de que a corrupção política, se aconteceu ou não conforme as delações premiadas, não são patrocinadas só pela Petrobras, é igualmente uma atitude suspeita.

Concentrado o alvo das críticas públicas, fundadas ou não, numa empresa pública como a Petrobrás, procura-se relegar ao esquecimento históricas ilegalidades e imoralidades perpetradas no passado por grandes grupos empresarias. Por isso, sob o mesmo fundamento do art. 5º, inciso LVII da Constituição Federal acima lembrado, há um movimento nacional diversificado procurando demonstrar como as normas jurídicas podem, sim, dar sustentação forte à ética política. Não são poucas as vozes, por exemplo, que, na defesa da tão sonhada reforma política, pretendem garantir legalmente a exclusão das doações privadas das empresas privadas aos partidos e aos candidatos.

Dá prova disso a intensa troca de mensagens dos movimentos populares, via-internet, pedindo “Devolve Gilmar”, dirigidas ao ministro Gilmar Mendes, do STF, para ele devolver ao plenário, com o seu voto, o processo que julga ação proposta pela OAB nacional, já contando com a maioria dos votos desse mesmo plenário, pretendendo exatamente isso: a proibição desse tipo de “pressão política antecipada” do poder econômico sobre o poder político, num toma lá da cá tão conhecido e praticado quanto vergonhoso.

Tem-se argumentado contrariamente a tal proibição, que a publicidade obrigatória das doações de empresas constituiriam garantia de barreira contrária à “caixa dois”. Com o devido respeito a essa opinião, isso equivale a defender a hipótese de que a publicidade de todo o ato lícito impede a ilicitude contrária, coisa que a história do direito e a própria moral desmentem de forma indubitável.

As razões pelas quais se desencadeou o caso Petrobrás, assim, servem para se ampliar o espectro investigativo das causas pelas quais isso acontece bem como das responsabilidades públicas e privadas capazes de provocar crises políticas dessa dimensão. Dois estudos podem nos ajudar, tanto para identificar tais causas quanto para nos prevenir e atacar os seus indesejados efeitos. O que se revela mais preocupante neles é o quanto a própria democracia corre risco quando se deixa tomar por opiniões que, alegadamente, constituem a sua melhor defesa.

Um professor espanhol de Direito Administrativo, Jaime Rodríguez Arana publicou “Ética institucional. Mercado “versus” Función Pública” (Madri: Dykinson, 1996), um estudo no qual procura responder a uma pergunta extraordinariamente atual para a realidade brasileira. Em tradução livre para o português, ali se pode ler:

“O que aconteceu para que hoje tenha mudado tanto a percepção que a generalidade dos cidadãos tem – ou temos – dos políticos? A causa não é difícil de adivinhar posto que, hoje em dia, a essência supra-individual de comunidade da organização política se diluiu em favor do interesse pessoal. Por isso, a atuação dos poderes públicos se explica em função de limitações que se produzem na vida dos cidadãos.” (…) “… vai-se perdendo a ideia de serviço público e, nesse defeito, tem surgido com não pouca força, uma nova e perigosa dimensão de aproveitamento pessoal, de interesse pessoal, que também se instalou na função pública em sentido amplo.” Com base em Jean Daniel,então diretor do semanário francês *“Le nouvel Observateur”*, lembra o professor Jaime: *“A democracia, regime que convida ao vício, está condenada à virtude, se não quiser desaparecer”.*

Se essa lição for comparada com a do conhecido professor e defensor dos direitos humanos Fabio Konder Comparato em “Ética. Direito, moral e religião no mundo moderno” (São Paulo: Companhia das letras, 2006), conclui-se como esse “interesse pessoal”, inspirado hoje no neoliberalismo, procura dominar o Estado, como um meio seguro de garantir e reproduzir a segurança indispensável aos interesses do capital, indiferentes ao custo social que cobram.

Analisando a última obra de Friedrich Hayek, famoso defensor da mais ampla liberdade dos mercados, salienta o professor Comparato, em chave de leitura capaz de nos convencer, hoje, não só sobre as causas subjacentes à crise porque passa o governo da República e a Petrobrás, mas também sobre os riscos inerentes à “governabilidade” e os que corre a empresa de ser privatizada:

“Tratava-se,na verdade, do que se veio depois a denominar neoliberalismo. O que se sustentou e propagou a partir dos anos 70 do século passado, com o êxito que todos sabem, foi que os gastos públicos com saúde, educação, previdência e assistência social são um processo altamente irracional, sob o aspecto da coerência administrativa e da estabilidade fiscal. O argumento foi astucioso: em lugar de se dizer que o aumento dos gastos públicos com  olíticas sociais solapa o capitalismo, alardeou-se que tais despesas, pelos seus efeitos inflacionários, constituem uma séria ameaça ao regime democrático. Essa ameaça constituiria em que o Estado Social carece intrinsecamente de “governabilidade”: os governos não contariam com os recursos financeiros indispensáveis para fazer atuar os serviços públicos básicos. Em suma: o atendimento dos direitos econômicos e sociais dos cidadãos conduziria o Estado à falência. Como bem demonstrou no Brasil um dos grandes teóricos do desenvolvimento nacional (Celso Furtado), essa acusação dos ideólogos neoliberais representou, na verdade, o estratagema típico do caluniador: o adversário é acusado de cometer exatamente o mesmo delito que o acusador se prepara para praticar ou já pratica. Os países da periferia do mundo capitalista – e até mesmo algumas grandes potências – foram constrangidos, para manter acesso ao mercado global, a deixar praticamente de operar políticas monetárias ou fiscais, além de se desfazerem de empresas estatais estratégicas (a chamada política de privatização). Ou seja, os países mais pobres e débeis viram-se condenados a não mais realizar políticas macroeconômicas, pelo abandono dos instrumentos indispensáveis para tanto. Doravante o mercado incumbir-se-ia de tudo.”

O caso Petrobras, portanto, envolve muito mais do que aparenta. Esse clamor escandalizado de grande parte do povo, muito ampliado pelas versões antecipadas dos fatos considerados criminosos, por uma parte da mídia interessada em desmoralizar a atividade política e seus agentes, poupando corruptores, abre oportunidade para o governo da República e a Petrobrás serem acusados “de cometer exatamente o mesmo delito que o acusador se prepara para praticar ou já pratica” como diz o professor Comparato: ser obrigado a abandonar suas políticas sociais, “deixar praticamente de operar políticas monetárias ou fiscais, além de se desfazer de empresas estatais estratégicas”, como é a Petrobrás.

O povo brasileiro não merece isso, tenha a atual crise ético-político o fim que tiver.

Crise é "forjada, mentirosa e induzida pela mídia"

Crise é "forjada, mentirosa e induzida pela mídia", diz Leonardo Boff. Teólogo afirma que veículos de comunicação são golpistas e contra o povo, mas com os movimentos sociais emergiu uma nova consciência política e o outro lado ficou sem condições de dar o golpe.


Leonardo Boff conclamou a ocupar as ruas contra o ódio e em defesa do Brasil A crise econômica e política pela qual o país atravessa neste momento é "em grande parte forjada, mentirosa, induzida, ela não corresponde aos fatos", afirma o teólogo Leonardo Boff. Segundo o teólogo, a crise amplificada por uma dramatização da mídia. "Essa dramatização que se faz aqui, é feita pela mídia conservadora, golpista, que nunca respeitou um governo popular. Devemos dizer os nomes: é o jornal O Globo, a TV Globo, a Folha de S. Paulo, o Estadão, a perversa e mentirosa revista Veja."

Em entrevista à Rádio Brasil Atual na segunda-feira (9), o teólogo disse que, no entanto, o atual nível de acirramento no cenário político não preocupa porque, para ele, comparado a outros contextos históricos, a "democracia amadureceu". Ele diz acreditar, ainda, na emergência de uma "nova consciência política".

Boff também considera que o cenário brasileiro é bastante diferente da Grécia, Espanha e Portugal, onde são registrados centenas de suicídios, por conta do fechamento de pequenas empresas e do desemprego, e até mesmo de países centrais, como os Estados Unidos, que veem a desigualdade social avançar.

"A situação não é igual a 64, nem igual a 54", compara. "Agora, nós temos uma rede imensa de movimentos sociais organizados. A democracia ainda não é totalmente plena porque há muita injustiça e falta de representatividade, mas o outro lado não tem condições de dar um golpe."

Para Boff, não interessa ao militares uma nova empreitada golpista. Restaria ao campo conservador a "judicialização da política", e acrescenta: "Tem que passar pelo parlamento e os movimentos sociais, seguramente, vão encher as ruas e vão querer manter esse governo que foi legitimamente eleito. Eles têm força de dobrar o Parlamento, dissuadir os golpistas e botá-los para correr."

Sobre o 'panelaço' ocorrido no domingo, durante o discurso da presidenta Dilma Rousseff para o Dia Internacional da Mulher, Boff afirma que o protesto é "totalmente desmoralizado", pois "é feito por aqueles que têm as panelas cheias e são contra um governo que faz políticas para encher as panelas vazias do povo pobre".

O teólogo afirma que a manifestação expressa "indignação e ódio contra os pobres" e são símbolo da "falta de solidariedade"; e que o "panelaço veio exatamente dos mais ricos, daqueles que são mais beneficiados pelo sistema e que não toleram que haja uma diminuição da desigualdade e que gostariam que o povo ficasse lá embaixo".

Sobre o ato programado pela CUT e movimentos sociais para sexta-feira (13), Leonardo Boff diz que a importância é reafirmar os valores democráticos e a defesa da soberania do país: "Aqueles que perderam, as minorias que foram vencidas, cujo projeto neo liberal foi rejeitado pelo povo, até hoje, não aceitam a derrota. Eles que tenham a elegância e o respeito de aceitar o jogo democrático".

O teólogo frisa, mais uma vez, não temer o golpe. "É o golpe virtual, que eles fazem pelas redes sociais e pela mídia, inventando e fantasiando, projetando cenários dramáticos, que são projeções daqueles que estão frustrados e não aceitam a derrota do projeto que era antipovo."

terça-feira, 3 de março de 2015

Drones - criados para serem predadores. Tecnologia a serviço da morte.

Dronês: O Léxico da drone-língua (de Bugsplat a Targeted killing)8/2/2013, Daniel Schwartz, CBC, Canadáhttp://www.cbc.ca/news/world/drone-speak-lexicon-from-bugsplat-to-targeted-killing-1.1342966



Entrelido na Vila Vudu:

(1) Do
Dicionário Cambridge # Bugsplat not found
(2) Bug splat [lit. inseto esmagado] is the official term used by US authorities when humans are killed by drone missiles
(2a) Inseto esmagado [ing. bugsplat] é o termo oficial usado pelas autoridades norte-americanas, quando humanos são mortos em ataque por armas disparadas à distância [drones]


John Brennan, que Obama pôs na CIA, defende a política dos drones

Drones. [lit. Zangão. O zumbido do zangão (?)] A palavra tem lá seus fãs (sobretudo na imprensa dita ‘de notícias’) e lá seus detratores (incluindo o subsecretário geral da ONU para preservação da paz). O mesmo se diz dos usos dos drones  para matar gente.

Mas quando se começa a examinar o termo e suas muitas variações, o dronês,
a drone-língua dos drones, parece que existe mais para encobrir e obscurecer do que para iluminar e esclarecer.

Nem chega a ser propriamente surpresa em tempos em que expressões como “entrega extraordinária” [
ing. dronês = “extraordinary rendition” (essa já está dicionarizada no
Cambridge Dictionary = sequestro de prisioneiros e entrega em outros países, para serem torturados, nos casos em que tortura seja crime no país dos sequestradores)] e “interrogatório reforçado [ing. dronês “enhanced interrogation” (tortura)] são agora parte do vocabulário político.

Aqui vai um pequeno glossário, para ajudá-los a compreender o debate sobre os
drones.

Veículo Aéreo Não Tripulado [ing. Unmanned aerial vehicle, UAV] é como os militares preferem chamar os drones. “Veículo Aéreo Não Tripulado de Combate” é usado para caracterizar os drones que usam armas disparadas à distância. [É claro que o veículo é tripulado; é tripulado à distância, com um joystick, como em videogames. Mas o nome é “Não Tripulado”, só para vê-sengana-os-trôxa (NTs)]

Segundo o Serviço de Pesquisa do Congresso dos EUA, os militares norte-americanos têm hoje [em 2013] cerca de 7.500 drones, dos quais cerca de 375 são armados. Na ONU, que criticou programas de drone , até a palavra já está proibida.

Essa semana, por exemplo, o subsecretário-geral para operações de manutenção da paz, Herve Ladsous, ao ser perguntado se a ONU tem planos para usar drones na vigilância na República Democrática do Congo, respondeu: “Eu não usaria nem a palavra drones.” Explicou aos repórteres que ele, pessoalmente, prefere “veículos aéreos não tripulados”.

O PREDADOR [Predator]: Drone fabricado pela General Atomics, em uso desde 1995, tem alguns modelos armados desde o início de 2001. O nome sugere que o alvo não seja humano, mera presa de um predador qualquer – como observou John Sifton da ONG Human Rights Watch. Também se lê a palavra “predador” nas páginas policiais, aplicada a assassinos seriais.

LEGENDA: MQ-9 Reaper da Força Aérea dos EUA, veículo aéreo não tripulado, prepara-se para decolar da pista militar de Wheeler-Sack no Forte Drum, N.Y. dia 18/10/2011
(Staff Sgt. Ricky Best/USAF/Reuters)

Orwell e a drone-língua
Em 1946, muito antes de a maioria dessas palavras e frases começarem a ser usadas, George Orwell escreveu que “o discurso político falado e escrito quase sempre existe para fazer a defesa do indefensável” e que “tem de vir sempre cheio de eufemismos, de platitudes, de nada-com-coisa-alguma e da mais nebulosa vagueza.”

Orwell escreveu naquele ensaio “Política e a Língua Inglesa”, que a língua política “é prevista para fazer as mentiras soarem como verdades, o assassinato como ato respeitável, e para dar ao mais puro vento aparência de solidez” (George Orwell,
Política e a Língua Inglesa, 1946).

O CEIFADOR [Reaper]: Versão posterior, maior, do Predador, também construído pela General Atomics, em operação desde 2007.

Sifton observa que esse nome “é um ícone. Implica que os EUA seriam o próprio destino, a Morte em pessoa, ceifando a vida dos inimigos destinados a morrer.”

Míssil Fogo Infernal, o Hellfire missile: Drones Predadores e Ceifadores disparam mísseis Fogo Infernal AGM-114 Hellfire contra seus alvos. Sifton diz que o nome dos mísseis de mais de 1,5m de comprimento invoca “o castigo pós-morte, acrescentando à violência brutal um toque de punição bem merecida.”

Ninho de couro sintético para onde levamos nossas bonequinhas [nosso Naugahyde Barcalounger]: É como os pilotos [de joysticks] chamam as poltronas do cockpit onde sentam na sala do centro de comando de joysticks da Base Aérea de joysticks em Creech, Nevada, de onde pilotam os drones que voam sobre o Afeganistão e outros locais.

Quando os pilotos [de joysticks] em solo, dentro da estação de controle de onde disparam contra seus alvos, veem, numa das telas, que acertaram o alvo [ou qualquer coisa que se mova perto dos alvos], eles gritam “Splash!” [onomatopeia para “[qualquer coisa] esmagada”], segundo o Los Angeles Times.

Bugsplat: É o nome do software do Departamento de Defesa dos EUA para “calcular e reduzir dano colateral” (número de civis mortos) resultante dos ataques aéreos.

O programa Bugsplat foi usado pela primeira vez na guerra do Iraque em 2003. Naquele momento, oficiais disseram ao Washington Post que o programa “vai modelar com mais precisão o dano potencial gerado por dado tipo e tamanho de bomba lançada de dada aeronave que voe a dada altitude”. A CIA também usa esse software Inseto Esmagado.

Ataque vistado, ou ataque assinado (Signature strike) [É diferente de “personality strike”, quando os EUA planejam ataque para matar uma determinada pessoa]: É o termo em dronês dos EUA para ataque premeditado letal contra indivíduo cuja identidade pode até ser desconhecida, mas cujo jeitão enquadra-se num padrão que sugira à CIA ou a militares norte-americanos que aquele indivíduo esteja envolvido em atividades militantes ou terroristas.

Os primeiros ataques assinados para os quais se usaram drones aconteceram no Paquistão em 2008, assinados pelo presidente George W. Bush.

O número desses ataques vinha caindo no Paquistão desde 2010. Até que em 2012 o presidente Barack Obama assinou ataques assinados cometidos no Iêmen.

O New York Times noticia que a Casa Branca “contabiliza como combatentes todos os homens em idade de serviço militar visto em zona de ataque, segundo vários funcionários do governo.” A CIA usa também o termo “matança em praia lotada” (“crowd killing”) para designar ataques vistados ou assinados.

Matança de alvo definido [Targeted killing]: A expressão refere-se a assassinato premeditado de indivíduo determinado. Também conhecido como “execução extrajudicial”.

John Brennan, que o presidente Obama nomeou para dirigir a CIA foi o principal autor da estratégia de Obama para matança de alvo definido.

Dentre alvos definidos para matança estiveram Anwar al-Awlaki, cidadão norte-americano e propagandista da al-Qaeda, morto num ataque por drone no Iêmen em 2011. Outro alvo definido para matança por drone em 2009 foi Baitullah Mehsud, líder do Talibã no Paquistão e suspeito de ter sido responsável pelo assassinato da ex-primeira ministra Benazir Bhutto.

Mehsud escapara vivo de pelo menos 16 operações de matança [de alvo definido] em 14 meses, antes de ser morto; nessas operações morreram algo entre 280 e 410 pessoas, conforme estimativas da New America Foundation, think-tank de Washington.

Matriz de Disposição [“disposição”, no sentido em que se diz “disposição de lixo”, “disposição de detritos”, “disposição de esgotos”] (Disposition matrix): É o banco de dados supervisionado por Brennan, para potencializar os resultados de “listas de matar” [kill lists] separadas, mas que se superpõem” mantidas pela CIA e pelos militares. A matriz de disposição inclui “biografias, locações, amigos e conhecidos, além de organizações, aos quais o alvo do qual se disporá [como lixo] seja conectado”, além de “estratégias para derrubar alvos, incluindo pedidos de extradição, operações de captura e patrulhamento por drones,” segundo o Washington Post, primeiro veículo a publicar o nome do banco de dados.

Ameaças Iminentes [Imminent threats]: Na sabatina pela qual passou antes de assumir o comando da CIA, 5ª-feira passada, Brennan disse que o governo usa ataques com drones apenas para conter ameaças iminentes de terroristas contra os EUA. Para conseguir matar Mehsud no Paquistão, a estratégia teve de ser complementada para incluir soldados dos EUA.

O documento do Departamento de Justiça que vazou essa semana para a rede NBC News explica como a definição de “ameaça iminente” está sendo alargada: “Para que algum líder de operações apresente uma ‘iminente’ ameaça de ataque violento contra os EUA não se exige que os EUA tenham prova clara de que qualquer específico ataque contra pessoas ou interesses norte-americanos esteja para acontecer no futuro imediato.”

Jameel Jaffer, do Sindicato Norte-americano pelas Liberdades Civis disse à rede NBC News que a política de Obama reconhece “alguns limites à autoridade que ela mesma cria, mas os limites são definidos de modo vago e elástico. É fácil ver como podem ser manipulados.” *****