Vila Vudu...
Por
que tentar agora uma discussão teórica do capitalismo, embora
esquelética e fragmentada, quando tanta coisa acontece pelo mundo, a
militarização da cultura dos EUA com reforço social para sua postura
hegemonista – mais ameaçada do que nunca antes desde a 2ª Guerra Mundial
pelo crescimento de outras nações e respectivas economias políticas, no
que se vai rapidamente tornando um sistema internacional multipolar? A
pergunta quase se autorresponde.
Os EUA correm cada vez mais
apertados, talvez já com medo, nada habituados a que alguém desafie seu
domínio exclusivo unilateral sobre o tal sistema, apoiado em “amigos e
aliados” servis e na FORÇA, real e de reserva, para implementar a
suserania norte-americana.
Essa semana, foram Índia e Arábia
Saudita: fazer a sintonia fina do Império, negociar e/ou renovar
alianças militares, oferecer garantias de segurança-proteção, processo
sem fim de pôr um dedo no buraco para fechar a represa, sendo o buraco,
nesse caso, a aspiração das pessoas a uma vida livre de exploração,
acordos comerciais enviesados e tortos, o cogumelo nuclear engordando
sempre no céu e escurecendo todos os futuros.
Por que agora,
outra vez? Talvez pela mais transparente das razões, o discurso Estado
da União de Obama, com seu mais recente cliché de enganação: a chamada
economia de classe média, para encobrir a diferença escandalosa entre
ricos e pobres, para, assim, enrijecer a estrutura de classes nos EUA,
com consequências mais antidemocráticas a cada dia.
Novos dados
da distribuição de renda explicam o golpe, pelo menos em parte. Mas não
explicam tudo, porque o poder cresce geometricamente quanto mais amplas
sejam as fundações, e quanto mais seja dado por indiscutível e
confirmado pelo povão (submisso, doutrinado, engambelado, acostumado).
Em
nenhum lugar mais que nos EUA, com seus mentirosos clamores de
democracia, de superação das classes, de guardião da paz do mundo e do
estado de direito, o poder traz com ele mais falsa consciência, com a
IDEOLOGIA que vem à tona na estabilização e aprofundamento do
capitalismo.
Daí, a economia de classe média, que não passa
de capitalismo de monopólio embrulhado em papel-de-seda para parecer
política inclusiva de oportunidades feita conforme a receita: Todos
somos capitalistas! Todos somos altruístas! Somos todos iguais – posto
que todos somos norte-americanos.
O subterfúgio é velho como as montanhas – Tocqueville bebeu no mito, as modernas empresas de relações públicas/propaganda/publicidade vivem da coisa, desde então, e o Evangelho dos Ricos opera sem parar, executivos de empresas & bancos, glutões in extremis, varrendo a entrada.
Obama é talhado para nossos tempos, sujeito sem nenhum escrúpulo, agente avançado da plutocracia. Com seus predecessores, a chicanería
era óbvia, Clinton, o Democrata, mãos-nas-mãos com Bush, o Republicano,
passo a passo na arena da desregulação, penetração no mercado do outro
lado do mundo, e estímulo econômico de preparação para a guerra,
solenemente pronunciado “segurança” e “defesa”.
Mas quem leva a
taça é Obama, enterrando o processo de acumulação de riqueza nas
platitudes do norte-americanismo, a mais modernosa economia de classe
média.
***
Herbert Marcuse em Razão e Revolução,[1]
um dos trabalhos mais significativos da filosofia política do século
20, diz no Epílogo que a sobrevivência do capitalismo dependeria de ele
absorver a própria negatividade, tarefa crítica para que fosse
bem-sucedido, mas superior aos seus meios. Dito de modo mais simples, o
capitalismo é suas contradições, não como alguma fórmula abstrata (para
mim) de materialismo dialético, mas nos modos políticos e estruturais
mais pão-com-manteiga, de comportamento sistêmico que leve à formação e à
manutenção de um estado-classe no qual os trabalhadores em termos
relativos, aproximam-se muito do exército industrial de reserva de Marx,
via uma condição de subconsumo que o mantenha onde está, e o princípio
da HIERARQUIA firmemente intacto no dia a dia.
Contradições que
são como código, então, para normalizar a repressão. Mas... não! Pode-se
chamar a coisa toda, mais simples, de “economia de classe média”.
Discuti recentemente nessas páginas aquele discurso, o golpe de Ben e Rebekah
[convidados de Michelle Obama para assistirem ao discurso na Casa
Branca] para personificar e miniaturizar o capitalismo avançado, Todos
& Todas sentados à mesa do café da manhã preparando a lista de
compras do dia, enquanto Johnny sai para a escola – um conto de
Megacapitalismo digno, como escrevi, de Goebbels.
Mas voltemos à
distribuição de renda, não com Kuznets, ou melhor, Gabriel Kolko de
“Riqueza e Poder”, para contrabalançar o piegas social-democrata de
Michael Harrington “A Outra América”.
Em vez disso, tomemos o artigo de Dionne Searcey e Robert Gebeloff no New York Times, “Nos EUA, a classe média só encolhe, com mais gente saindo dela, do que ascendendo para ela“
(Jan. 26), como resposta informal à economia de classe média. Começam
assim: “A classe média que o presidente Obama identificou em seu
discurso do Estado da União semana passada, como o fundamento da
economia norte-americana vem encolhendo já há quase meio século.” Nada
mau para o The Times, até aí.
Mas eles também desapontam,
usando uma banda elástica de renda, de $35 mil a $100 mil, para definir a
classe média, onde se encaixavam, no final dos anos 1960s, metade dos
lares norte-americanos. Ninguém (exceto, claro, os que foram expulsos da
‘classe’) percebeu a mudança em curso, porque muitos mais estavam
“ascendendo a ladeira econômica para as faixas mais altas.”
Nesse
ponto, Searcey-Gebeloff ficam mais sérios (digo isso, porque
estatísticas pré-2000 mostram quadro diferente, quando os níveis de
renda são mais precisos, incluindo a proporção nos 2/10 inferiores de
renda): “Mas desde 2000, a faixa de classe média continuou a diminuir
nos EUA. A razão principal da diminuição é que mais gente passou a
escorregar para faixas inferiores. Ao mesmo tempo, poucos e cada vez
mais poucos dos que estavam nesse grupo enquadram-se na imagem
tradicional de casal casado com filhos em casa, espaço preenchido cada
vez mais por idosos.” E os autores admitem: “Mesmo assim, independente
da renda, muitos norte-americanos identificam-se como ‘classe média’.
O
termo é de tal modo amorfo, que políticos muitas vezes citam esse grupo
ao introduzir propostas para as quais buscam apoio amplo.” (E, ideia
minha: nem pensar que Obama estaria usando o discurso do Estado da União
para fazer a mais reles propaganda!) Mesmo nessa faixa de renda,
“muitos norte-americanos que fazem mais que $100 mil se autoconsideram
de classe média”, especialmente “quem viva em regiões caras”, como a
Costa do Nordeste e a Costa do Pacífico. Quase dá pena dos que estão na
ou acima da faixa dos $100 mil – mais uma vez: a minha; os jornalistas
observam: “Contudo, as linhas estão traçadas, é claro que milhões estão
lutando para não perder itens que a maioria dos especialistas consideram
essenciais para uma vida de classe média.”
As mudanças
demográficas na composição da “classe média” são instrutivas. “A classe
média passou por uma transformação, ao mesmo tempo em que encolhia” –
escrevem eles. – Idosos trabalhando depois de se aposentarem caem aí;
casais com filhos pequenos caem abaixo dessa faixa como a vemos hoje.
Significa que “em anos recentes, o componente de mais rápido crescimento
da nova classe média têm sido lares chefiados por pessoas com mais de
65 anos,” com as aposentadorias garantindo alguma proteção, “agora que
norte-americanos idosos cada vez mais trabalham até bem depois da idade
tradicional de aposentadoria.” Por outro lado “casais com crianças – a
categoria que mais encolheu – são a categoria que também diminui mais
rapidamente de toda a classe média.” Mulheres casadas na força de
trabalho vêm impedindo que esse grupo caia ainda mais. “A mais recente
recessão pôs fim a qualquer avanço mesmo nessa categoria em geral
bem-sucedida. Sua porcentagem na classe média caiu três pontos
percentuais, e o grupo que vive com menos de $35 mil dólares/ano
aumentou.”
Mas vai tudo bem no Mundo Todo Feito de Pirulitos de Obama.
Adiante, o comentário que enviei ao New York Times, sobre o artigo de Searcey-Gebeloff:
Enquanto
alguém falar de “classe média”, seja estatisticamente (a faixa de $35
mil-$100 mil é absurda) ou como tópico de narrativa, continuaremos a ser
enganados, induzidos a pensar que a distribuição de renda é mais
democrática do que é, e que o poder está distribuído mais
equitativamente do que na verdade está.
A tal “classe média” de
Obama não passa de bordão de Relações Públicas, truque deliberado para
não deixar ver a realidade. O presidente apela às almas boas para que
vejam os EUA em termos não estruturais de não classe, ocultando assim a
concentração de riqueza e varrendo para baixo do tapete tudo que só faz
aumentar a DESIGUALDADE.
Ao usar esse quadro de referências que, claro, foi predominante por décadas, The Times
contribui para a visão de que pobreza e riqueza possam ser analisadas e
discutidas em termos não sistêmicos. Mas... E se a desigualdade estiver
inscrita nas fundações da sociedade norte-americana?
E o
quanto, para o bem ou para o mal, têm a ver com o fracasso econômico
demográfico, o gasto militar massivo, a guerra, a intervenção e o
militarismo em geral?
Os EUA como nação dependemos do
militarismo. Os números seriam ainda piores se não estivessem aí esses
gastos e essas políticas militaristas. E nem se fala do empurrão
artificial que a economia recebeu.
O discurso “Estado da União”
de Obama foi solene farsa, em plena discussão séria sobre “em que pé
estamos?”. O imposto para empresas que ele propõe é inferior ao que
temos vigente hoje. A ‘desregulação’ de Obama só faz promover a
consolidação financeira de vários modos da acumulação de capital. Ponha
na mesma conta a inflação, e o que se tem, seja por decisão política ou
por consenso bipartidário, é muita gente lutando para não morrer.
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[1]HERBERT MARCUSE [1898-1979] (1941) Razão e Revolução. Hegel e o surgimento da teoria social, Rio de Janeiro: Paz e Terra [NTs].